segunda-feira, 8 de abril de 2019

NO MEU TEMPO DE JUVENTUDE…

No meu tempo, na minha rua, os putos eram o que eram, miúdos irrequietos, gostavam de jogar à bola (algo parecido com futebol, mas com uma bola de trapos e as pastas da escola a servirem de postes das balizas), de ir para o café falar de política, embora pouco percebêssemos porque o 25 de abril de 1974 só tinha ocorrido 3 ou 4 quatros anos. Frequentar o primeiro Shoping Center da cidade, o Brasília e andar nas escadas rolantes, na altura novidade por cá.

Não me lembro de nenhum colega meu que frequentasse aulas de ballet… era uma sorte que tínhamos nesses nossos tempos, já na juventude do meu filho não era assim e eu sentia alguma dificuldade em compreender porque os pais faziam tanta questão de mandar os filhos e filhas para o ballet… costumava mesmo dizer que se avizinhava um país de bailarinos e bailarinas no futuro. E ria cá por dentro quando via aqueles miúdos, mais gorditos, de collants a esconderem-se no banco de trás do carro dos pais, quando estes paravam a falar comigo. E os putos, mal atingiram aquela fase de contrariarem e discutirem com os pais, saíram todos do ballet, felizmente para eles. Não tenho nada contra o ballet, principalmente para quem tem vocação, mas cá na terrinha, anda-se por modas ou porque o vizinho faz eu também tenho que fazer… por isso na Associação de Pais a que pertenci eu notava que as pessoas não me compreendiam, eu não andava em função de ninguém ou mesmo de invejas, para ser mais objetivo…

Eu ia para a escola de sapatos de lona, nada mau e um sobretudo roto ou melhor cozido numa manga que servia de chacota para alguns colegas meus, mas só até um dia… aquele dia em que lhes mostrei o remendo da minha manga em close-up. A partir desse dia passou a ser normal. Se fosse hoje até seria moda ir de roupa rota para a escola, nem sequer remendada… quando vejo alguns jovens de calças rotas dá-me vontade de os mandar, a eles e aos pais, se calhar mais às mães, a uma consulta de psiquiatria.

A comparação seguinte que ia fazer era a do lanche, mas desisti. Desisti por falta de elementos para comparação. No meu tempo felizes eram os que levavam lanche. A maioria limitava-se a esperar pela hora das refeições principais. Mas tinha uma vantagem, eramos muito menos esquisitos. Um dia destes o meu filho dizia-me não gostar de salsichas e eu pensava que bom que era para mim darem-me duas salsichas, daquelas pequenitas de lata, com um prato de puré de batata, porque a maior parte das vezes o puré aparecia sozinho à minha frente e eu como bom cristão, acolhia-o de braços abertos ou neste caso de boca aberta. Dizia a minha mãe: “ele gosta muito de puré”, claro não havia mais nada.

Mas estes episódios fizeram-me crescer e ser mais forte. Da minha geração muita gente emigrou. A onda de emigração já tinha começado quinze ou mais anos antes. Eu quis ir voluntário para a Força Aérea, sabendo que podia frequentar um curso de formação útil para o meu futuro, mas a minha mãe não deixou, porque nesses anos, os mais velhos ainda sofriam do síndroma da guerra colonial e a tropa era um destino tenebroso aos olhos das mães que viam os filhos partir. Mesmo depois da guerra ter terminado o estigma permanecia sobre a tropa. O meu futuro era assim condicionado porque, na altura, os meus direitos eram os de obedecer aos meus pais. Tive que procurar a auto-suficiência económica para poder romper os laços que me amarravam e não me deixavam aprender a caminhar por caminhos escolhidos por mim.

Comecei a conhecer então outro tipo de avaliação, principalmente paterno. Chegar mais tarde a casa significava ser "insurra" (a palavra em português que o meu pai pretendia era insurreto). Ter uma opinião sobre política diferente da dele, mesmo que a maior parte das vezes fosse ténue a diferença, era ser comunista. Não acreditar em princípios tradicionais do polvo católico dirigido pelo Vaticano era ser Testemunha de Jeová. O curioso é que o meu pai não era propriamente um frequentador assíduo da igreja católica e a minha mãe então muito menos. O meu pai passou a ser amigo do abade cá da terra, após ficar viúvo e precisar de apoio para ao final de 15 dias da minha mãe ter sido sepultada já andar com outra mulher. E claro que quando disse ao abade que o filho era comunista e Testemunha de Jeová, ganhou um aliado. Mais forte ainda deve ter sido essa aliança quando o dito abade soube da minha amizade com um dos poucos padres que lhe faziam frente, não teologicamente, mas sim na gestão dos crentes e distribuição de sacramentos.

Via há momentos um vídeo no Youtube dos desenhos animados Heidi. E de facto foi uma série com muito êxito na minha juventude. Nós compreendíamos a personagem que era feliz com tão pouco (materialmente). Como o amor do avô e a vida simples do campo, junto de animais e da flora natural eram mais importantes do que tudo o resto. Como uma simples e sincera amizade vivida pelos personagens motivava as crianças de então. Apesar de estarem no primeiro nível da pirâmide de Maslow, os personagens de Heidi atingiam os patamares mais elevados da dita e punham em causa, sem saber, as teorias aceites por tantos cientistas da MIT.

Domingos António Cabral
Retalhos da minha vida