Entravam habitualmente naquele restaurante. Inicialmente consumiam um menu reduzido, mas com o tempo e um pouco encostados à ideia que numa diária se pode consumir tudo pelo mesmo preço, tipo vale tudo, foram-se alargando. Testavam quase diariamente o dono do restaurante, incluindo algo novo no menu, pedindo uma segunda sopa, uma cerveja extra, um vinho, enfim... E aquele homem que os atendia e que muitos dias era obrigado a fazer das tripas coração, tudo aguentava. Queria no mínimo manter o negócio; muitas vezes mesmo com prejuízo.
Um dia testaram a hipótese de partilhar um prato do dia e baseados na tal teoria, pediram uma sopa em dois pratos, para as duas pessoas... Esticavam a corda. O atendimento mantinha-se e aquele homem, mais culto do que eles, apesar dos "canudos" que ostentavam, "dava a outra face". E ao mesmo tempo aguentava a pressão da mulher que na cozinha se revoltava com o que se passava na sala e o filho que apelidava aqueles clientes, que ele bem conhecia, com um nome muito feio que se dá a pessoas cuja vida é explorar outras que trabalham em profissões pouco dignas.
Um dia a mesa era composta de cinco pessoas. Foram servidas quatro doses, sendo que uma era a tal da partilha. Essa partilhada era de salada de atum com feijão frade. Colocada a travessa na mesa, uma das pessoas (não as que iam partilhar) retirou uma azeitona da travessa com a mão, comeu-a e colocou o caroço numa beira da travessa; talvez porque lhe tivesse sabido bem e enquanto aguardava a chegada da sua dose, comeu uma segunda azeitona e repetiu a cena.
Servidas todas as doses, o pessoal começou a tirar a comida para os pratos. Subitamente o empregado de mesa foi chamado e deparou-se com uma reclamação. "Veja o que se passa na cozinha que esta travessa traz dois caroços de azeitona." Desesperado, sem saber como responder sem ferir a sensibilidade das pessoas, ele foi para trás e conferiu tudo. Naquele dia já haviam saído três doses do mesmo prato e as travessas encontravam-se, tal como haviam sido levantadas das mesas, no balcão da "copa suja". O sistema de "poka-yoke" que ele havia implementado e que consistia em ter num recipiente o número de componentes que precisava para as doses que se propunha fazer, garantindo que nada faltava e era colocada a quantidade certa, estava correcto. Tinha previsto quatro doses, haviam saído três mais a tal, o que dava precisamente quatro e o recipiente que tivera dezasseis azeitonas estava vazio. Numa tentativa de ver se a pessoa que havia consumido as azeitonas se acusava e limpava a imagem do estabelecimento, voltou à mesa e garantiu que o prato tinha trazido as quatro azeitonas, até porque a decoração era standard... Mas a pessoa não se acusou e exigiram a troca do prato, por outro diferente (carne)...
O homem apercebeu-se que uma das outras pessoas tinha ficado ruborizada e pensou que até final da refeição tivesse coragem para influenciar a pessoa que comeu as azeitonas a acusar-se. Mas não... Naquele dia o ambiente esteve pesado até eles abandonarem. E já depois de saírem, um outro cliente que havia presenciado a cena acalmou o homem que, chocado com a atitude deles, até a saliva lhe custava a engolir. Esse vira tudo, mas quando solicitado a testemunhar, somente para esclarecer, recusou-se: "Por favor não me envolva com essa gente"... Essa gente, foi como se referiu a eles...
O que mais me custa é que é nas mãos destas pessoas sem princípios que muitas vezes somos obrigados a confiar os nossos filhos para que os ensinem... Sim, ensinem... O quê?... Só mesmo as matérias técnicas, digo eu... E desde esse dia não mais voltaram a entrar naquele estabelecimento. A cozinheira acredita que tudo foi premeditado ou que, pelo menos, eles tenham descoberto e tido vergonha de voltarem... Aquele homem, o empregado, conhece tão bem as pessoas que não acredita que esses tenham vergonha de coisa alguma. O que aconteceu foi que Deus os afastou, não deixando que continuassem a humilhar o Seu povo, ou pelo menos a tentar...
Domingos António Cabral
Retalhos da minha vida